segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Sino: entre a memória e o sagrado

No decurso de uma escavação que acontecia numa obra particular, um objecto da memória colectiva das gentes da vila ribatejana de Coruche, trouxe à superfície um velho vigilante desta vila – um sino que data de 1287. Nesta descoberta do acaso, todas os procedimentos da ciência arqueológica foram accionados de imediato. Mais à frente abordaremos este tema. A vulgar descoberta de um sino, não é apenas banal, pelo contrário, faz-nos provocar o espírito, olhar para as torres das nossas igrejas e outros edifícios, e perceber que estes grandes vigilantes, não só guardam a nossa memória, como também eles têm memória. E tantas vezes ignorados, que a sua voz a maior parte das vezes nos passa despercebida. Mas, sempre atentos ao tempo e ao espaço das comunidades.

Por todas as aldeias, vilas e cidades na paz da planície, no alto monte, no silêncio de uma aldeia, ou na agitação de uma cidade, somos como que perseguidos por aquele som, que muitas vezes nos passa completamente despercebido, pelo hábito e pela sua longa história ao serviço de todos homens crentes e não-crentes. Um soleníssimo “dlim-dlão” que marca o espaço, o tempo e o ritmo social do Homem.

Muito pouco se sabe acerca dos sinos, da sua arte, da sua criação, em Portugal. Várias são as publicações sobre esta temática, no entanto, com os trabalhos de arqueologia, realizados em Coruche e com a posterior publicação “História da Fundição Sineira em Portugal”, obra realizada por Luis Sebastian, abriu-se uma lacuna no campo da historiografia portuguesa. Perceber quem foram, o que são e o que serão estes vigilantes, sempre presentes na vida quotidiana que nos sussurra ao espírito que nos desperta e embala estando presente na nossa vida?

Não existem dados exactos na História acerca de como surgiu este velho companheiro sempre presente na memória colectiva dos povos e das múltiplas comunidades. A sua origem, poderá ter sido na China por volta do ano 3000 a.C. e começou por ser um objecto pagão, que só é reconhecido pelo Cristianismo no séc. II d. C. com a finalidade que lhe é reconhecida actualmente. Porém, é no séc. VI que o sino entrou na cultura europeia pelas mãos de monges missionários. A partir de 1600 foi introduzida a técnica de produzir certos timbres, notas e mesmo melodias. A partir dessa data, pela primeira vez, foi possível fazer soar vários sinos simultaneamente sem que fosse sentido uma dissonância musical.[1] Neste sentido, o som de um bom sino é captado a quilómetros de distância. Por isso em tempo de conflitos e com o desenvolvimento dos canhões no séc. XV, os campanários das igrejas eram as primeiras instalações a caírem nas mãos dos invasores, não só para evitar a transmissão de sinais, mas também para que os sinos fossem posteriormente transformados em potenciais canhões.[2]

Na verdade, o sino tem sempre assumido um papel de particular importância nos ritmos individuais e colectivos, quer na esfera do quotidiano quer em tempos de festa e ritual.[3] No âmbito das sociedades rurais, o sino é expressão de diferentes modos de organização e planos de representação do tempo cronológico. Desde logo, e em harmonia com o tempo solar, regula o quotidiano das populações, anunciando o inicio e o fim do trabalho dos campos, convocando regularmente os fiéis à oração pelas Trindades[4], assim configurando um tempo cíclico, de curta, por seu turno integrado no ciclo mais extenso do calendário anual, cujos principais momentos cerimoniais o sino sinaliza de modo particular.[5] Se o sino é concebido popularmente como a voz através do qual Deus faz conhecer os seus desígnios, ele é também entendido como meio de comunicação com a divindade, clamando, com sua voz sonante, para a intervenção do poder divino num fenómeno fora do controlo humano, tendo igualmente este procedimento sido justificado, sobretudo na esfera eclesiástica, como mobilizador da fé da comunidade.[6] Pela sua bênção, a Igreja transmuta o sino de simples instrumento sonoro em alfaia religiosa, marca-o como sua propriedade e assume-se com a única fonte de legitimação do seu uso, quer para fins sagrados/religiosos (o anúncio da Eucaristia e demais celebrações religiosas) quer para fins profanos (o alarme em caso de fogo ou outros perigos.[7]

Mas como é o nascimento deste mensageiro de Deus? Falamos do seu processo de fundição. O seu processo de fundição é envolto por um ritual que inclui: a matéria prima composta de cerca de 20% de estanho e 80% de cobre; a forma e o cálculo da sua espessura, importante na formação do timbre; preparação da matéria fundida; e o escorrimento dessa matéria fundida para dentro da forma, onde se faz silêncio e onde existe um cerimonial.[8] Em boa verdade, a fundição de um sino revela-se, como muitos outros exemplos de produção de metais, com uma grande carga simbólica, sendo muitas vezes a Igreja a intervir, mediante a bênção do bronze no momento de verter o metal no molde.[9] Depois deste processo, o futuro sino será enterrado no chão da oficina para evitar que a temperatura de 1150º graus possa destruir a forma e o líquido incandescente corre na sua direcção por canais de tijolos. Quatro dias depois, o sino já na temperatura normal, vem à superfície, onde é retirado do molde, e onde se faz os primeiros testes ao seu timbre.[10] O timbre do sino depende da sua forma, dimensão, peso, características da liga, e que as correcções e as afinações das suas tonalidades se efectuem após a fundição e a sua separação do molde, é, de facto a operação da fundição que se entende como crucial na produção da sua sonoridade.[11] Neste sentido, também os sinos se distinguem uns dos outros, tal como os homens, isto é, distinguem-se pelo seu timbre, pela altura, pela intensidade, pela duração do som que emitem e, ritmando o tempo e assinalando cada momento específico da vida do individuo ou da comunidade. Os toques deste revelam-se particularmente codificados, adequando-se a cada tempo da comunidade: cantar, chorar, picar, repicar, badalar, bater, rebater, tanger, destanger, correr, bombear, abombar, bamboar, bandear, dobrar, etc.[12]

Na sua função litúrgica, o sino assume um papel de grande importância. O toque do sino assinala as horas do dia e da noite, os tempos de oração, a celebração da Eucaristia, o Ângelus e a oração comunitária num mosteiro. Ele reúne o Povo de Deus para as celebrações litúrgicas, adverte os fiéis quando se dá um acontecimento importante que é motivo de alegria com a entrada de um novo bispo ou de um pároco, ou de tristeza para determinada parcela da Igreja ou para alguns dos seus fiéis.[13] É o que acontece nas celebrações exequiais, ou outros acontecimentos de grande importância para a vida comunitária. A importância do sino é de tal forma importante para a Igreja que esta propõe, por exemplo, para a Missa da Ceia do Senhor, em Quinta-feira Santa, o toque dos sinos ao canto do Glória – “Enquanto se canta o Glória tocam-se os sinos, e uma vez terminado, não voltarão a tocar até à Vigília Pascal.[14]

Em Portugal, a História dá-nos a informação de vários centros de produção de fundição sineira ao longos dos tempos. Actualmente temos duas grandes fundições sineiras, em pleno activo: a Fundição de Sinos de Rio Tinto e a Fundição de Sinos de Braga de Serafim da Silva Jerónimo e Filhos Lda. A Fundição de Sinos de Rio Tinto tem o seu inicio em finais do séc. XIX. Desde então vários foram os sinos que aí foram construídos durante todo séc. XX, não só para Portugal, como para o Mundo. Em território nacional, segundo a informação disponível a Fundição de Sinos de Rio Tinto é responsável pela construção de 19 sinos, com o peso de 4155 kg, na Penha – Guimarães; em Rio Tinto com a construção de 17 sinos, com o peso de 3655 kg; em Paranhos – Porto, com a construção de 10 sinos, com o peso de 2215 kg; em Valpaços, com a construção de 12 sinos, com o peso de 2215 kg; na Batalha, com 13 sinos, com o peso de 1290 kg; no Castelo de Palmela, com o 1 sino, com o peso de 1200 kg; na Sé da Guarda, com 2 sinos, com o peso de 1727 kg; em Bissau – Guiné, com 2 sinos, com o peso de 1365 kg e no Mosteiro de Grijó, com 1 sino, com o peso de 1550 kg.[15]

Porém, havendo ligações familiares entre as duas fundições, em 1932, é fundada a Fundição de Sinos de Serafim da Silva Jerónimo e Filhos Lda. Em 1947, integra a indústria de relógios de torre mecânicos de corda manual. Em 1964, procede à automatização dos toques de sinos por meios electromecânicos. E em 1983, no âmbito de uma parceria com a Universidade do Minho, desenvolve o relógio de torre computorizado, através de um microprocessador.[16] Actualmente, a empresa um pouco por todo o país realiza várias construções de sinos. No entanto importa salientar, talvez a sua visibilidade ao nível mundial, exportando sinos para os PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), Brasil, Canadá, França, Espanha, Porto Rico e Venezuela.[17]

Tal como, a Fundição de Sinos de Rio Tinto, ambas as fundições, têm hoje nos seus princípios a preservação de uma arte e de uma tradição que os anais da história não poderão jamais deixar morrer. Porque o sino não é um mero instrumento, é sinal de uma memória colectiva, sinal de um caminho que nos eleva para o Sagrado e que jamais poderá ser apagado.

Como exemplar, e como já mencionado no inicio, temos o sino que durante uma escavação, numa obra particular, junto à Igreja de S. Pedro da vila de Coruche, emergiu à luz do dia, no interior de uma cripta-ossário[18]. Um sinal não só de um objecto arqueológico, mas de toda a mensagem que este transporta. Um documento patrimonial de um tempo, de um espaço e que nele está contida homens e mulheres que viveram uma época. Segundo a inscrição que dista no sino, é datado de 1287, o que faz dele o mais antigo sino encontrado em território português. Como viveria em 1287 a sociedade de Coruche? Quem eram as suas gentes, os seus, usos e costumes? E todo um mais conjunto de questões a que o sino de Coruche, poderá dar uma resposta. Neste sentido, poderá aqui estar uma entrada para uma possível investigação histórica, a que os agentes do mundo da historiografia não poderão passar ao lado.

Na verdade, estando esta cripta-ossário junto à Igreja de S. Pedro, é legítimo supor-se que o número mínimo de cinquenta indivíduos entre os quais não adultos, se deva à transladação de parte ou totalidade, de uma área de enterramento, associada ao templo primitivo, datável do reinado de D. Sancho II. Neste sentido, será necessário referir-se que, sendo o sino um elemento da antiga construção da igreja, esta de génese medieval, a sua construção actual aparenta ser inteiramente seiscentista, é possível que ao terramoto de 1531, em que muitos edifícios na região foram abandonados e arruinados, poderá ter levado à sua progressiva reconstrução parcial ou total, no qual se poderá integrar a profunda reforma sentida na Igreja de S. Pedro, provavelmente ocorrida, na viragem para o séc. XVII.[19]

As dimensões do sino exumado são de 22 cm de diâmetro na boca para 29, 2 cm de altura total. A altura do sino, subtraída a asa, é de 21 cm, resultando numa asa de 8 cm de altura, representando na totalidade o peso de 5, 6 kg, considerando já ausência de um pequeno fragmento entre a asa e o ombro.[20] O sino foi ainda submetido a diversas técnicas químicas, (análises por micro-fluorescência, e observação por microscópio óptico) no sentido de melhor conhecer e aprofundar a sua composição ao nível de elementos químicos, e retirar informação mais detalhada acerca de toda a informação que quimicamente ele nos pode fornecer.

Muitas vezes esquecido, muitas vezes menosprezado, o sino cumpre o papel de presença. Presença de Sagrado na vida quotidiana da vida das comunidades. Presença da vida dos homens e mulheres que fazem a vida deste mundo. Um digno embaixador de Deus junto dos homens. Numa sociedade que se afastou do Sagrado, o sino mantém a sua missão de presença de Deus na vida humana.

Uma sociedade que rejeita Deus da sua vida, e que busca sinais de Deus, o sino é esse sinal de Deus que todos os dias no interpela no meio de um campo, ou no centro de uma cidade e que nos faz tocar ao coração que não estamos sós. Deus está connosco.

josé miguel



[2] Idem

[3] COSTA, Paulo Ferreira da, “Sons do Tempo: usos sociais e simbólicos do sino na cultura popular, in Luis Sebastian, “História da fundição sineira em Portugal, Museu Municipal de Coruche, 2008, pág. 79

[4] O Toque das Trindades consiste no toque do sino, ao inicio do dia, ao meio-dia e ao fim da tarde. A finalidade seria para elevar os fiéis à oração.

[5] COSTA, Paulo Ferreira da, “Sons do Tempo: usos sociais e simbólicos do sino na cultura popular, in Luis Sebastian, “História da fundição sineira em Portugal, Museu Municipal de Coruche, 2008, pág. 81

[6] Idem, pág. 86

[7] Idem pág. 95

[9] COSTA, Paulo Ferreira da, “Sons do Tempo: usos sociais e simbólicos do sino na cultura popular, in Luis Sebastian, “História da fundição sineira em Portugal, Museu Municipal de Coruche, 2008, pág. 95 e 96

[11] COSTA, Paulo Ferreira da, “Sons do Tempo: usos sociais e simbólicos do sino na cultura popular, in Luis Sebastian, “História da fundição sineira em Portugal, Museu Municipal de Coruche, 2008, pág. 96

[12] Idem, pág. 97

[14] Directório Litúrgico, Secretariado Nacional de Liturgia, nº6, 2009, pág. 87

[17] Idem

[18] Uma construção subterrânea, onde neste caso estariam guardadas ossadas humanas. Foi junto às ossadas que se encontrou o sino.

[19] SEBASTIAN, Luis, “O sino de 1287 da Igreja de São Pedro de Coruche, in Luis Sebastian, “História da fundição sineira em Portugal, Museu Municipal de Coruche, 2008, pág. 275

[20] SEBASTIAN, Luis, “O sino de 1287 da Igreja de São Pedro de Coruche, in Luis Sebastian, “História da fundição sineira em Portugal, Museu Municipal de Coruche, 2008, pág. 277