Tudo começa com um equívoco. Hoje, quando se fala da Igreja, é numa gigantesca instituição e nos seus altos e médios hierarcas que de facto se pensa: Papa, bispos, padres. Já se esqueceu que, no princípio, não era assim, pois Igreja significava a reunião das Igrejas, entendidas como assembleias dos cristãos congregados em nome de Jesus.
Foi com Constantino e Teodósio que tudo se modificou, quando o cristianismo se tornou religião oficial do Estado e a Igreja acabou por transformar-se numa instituição de poder. Desde então, de um modo ou outro, espreitou o perigo de esquecer a Igreja enquanto comunidade dos fiéis a Cristo, que caminha na fé e na tentativa de actualizar no mundo o reinado de Deus a favor de todos os homens e mulheres, sobretudo dos mais pobres e abandonados, para sublinhar sobretudo uma Igreja-instituição, hierarquizada e poderosa. Quem congrega é menos Jesus do que a hierarquia, e a fé está mais dirigida ao dogma do que à pessoa de Jesus e ao Deus salvador.
Depois, tenta-se o diálogo da Igreja com o mundo. Mas que pode entender-se por isso? Também a Igreja não é de facto mundo, embora mundo a partir de uma determinada visão? Pertencemos todos ao mesmo mundo, ainda que a partir de visões múltiplas e diversas. Mas, mesmo no pressuposto do diálogo, ele torna-se difícil, já que houve rupturas quase insanáveis. Pense-se, por exemplo, que até à década de 60 do século passado se manteve o Índex, isto é, o catálogo dos livros cuja leitura era proibida aos católicos. Aí figuravam não só muitos teólogos, mas também os pais da ciência e da filosofia modernas, figuras eminentes da história, da literatura e do direito: Copérnico e Galileu, Descartes e Pascal, Bayle, Malebranche e Espinosa, Hobbes, Locke e Hume, também Kant, evidentemente Rousseau e Voltaire, mais tarde, John Stuart Mill, Comte, os historiadores Condorcet, Ranke, Taine, igualmente Diderot e D'Alembert com a Encyclopédie e até o Dictionnaire Larousse, os juristas e filósofos do Direito Grotius, Von Pufendorf, Montesquieu, a nata da literatura moderna, de Heine, Vítor Hugo, Lamartine, Dumas pai e filho, Balzac, Flaubert, Zola, a Leopardi e D'Annunzio, entre os mais recentes, Bergson, Sartre e Simone de Beauvoir, Unamuno, Gide. Com o fim do Índex, não terminaram as censuras a dezenas de teólogos, entre os quais Hans Küng, Leonardo Boff, J. Masiá, Jon Sobrino. Como se a Igreja vivesse sob o reflexo do medo de quem ousa pensar.
As dificuldades são diversas, tanto ao nível da doutrina como da própria organização. O mundo moderno pôs em causa o princípio da simples autoridade vertical, mas a Igreja tem dificuldade em aceitar a dúvida e argumentar. Ao princípio da democracia a Igreja contrapõe uma monarquia absoluta. Na sociedade civil, aos dirigentes aplicam-se denominações funcionais: ministros, reitores, directores, mas, na Igreja, o Código de Direito Canónico continua com categorias quase ontológicas: são "superiores" e até "superiores maiores", o que implica que os outros são "inferiores". Jesus tinha dito: "sois todos irmãos". Mal um padre é nomeado bispo fica o seu nome próprio precedido de "Dom", abreviatura de "Dominus" (senhor), título senhorial antiquado. Dificuldade maior é a reconciliação com o corpo, com a sexualidade e com as mulheres na sua igualdade com os homens. Do ponto de vista doutrinal ainda hoje causa espanto que o padre Teilhard de Chardin, o cientista que tentou conciliar a fé com uma concepção evolucionista do mundo, continue sob suspeita. Mas como se pode proclamar ainda, no quadro da evolução, a visão tradicional de Adão e Eva e do pecado original? Como é concebível que dois seres apenas semiconscientes tenham cometido um pecado que estaria na origem de todo o mal do mundo? Como é possível continuar a transmitir a ideia perversa de que Deus descarregou sobre o seu Filho na cruz toda a sua cólera, reconciliando-se desse modo com a Humanidade? Este é o nervo da questão: acredita-se, sinceramente, por palavras e obras, que Deus é Amor?
Artigo do Pe. Anselmo Borges, professor de Filosofia, in Diário de Notícias, 2007